domingo, 16 de novembro de 2008

Chão de Estrelas

Abriu a porta da casinha mal rebocada. Cabisbaixo, quase cai ao chão ali mesmo para chorar, quando ouviu o cantar doído do canário. Aquela noite foi ensurdecedora, de silêncios e lamentos. Os choros, dele e do pássaro, alternadamente, um por complacência ao outro. Afinal, isso de verter lágrimas em ritual de pranto é uma atividade de considerável desgaste emocional e físico para os homens e para os canários e, sendo assim, os dois companheiros dividiam a obrigação do choro, que era como um velório, embora não se tratasse de morte morrida.

De manhã, o galo cantava e o sol vinha rebolante e preguiçoso de subir aquela ladeira tão íngreme que o bairro pobre tinha ali sido esquecido no meio da cidade de asfalto. Seu Rufino tomou coragem, levantou-se da cama de madeira comprada na feira, com o colchão de espuma crua quase todo à mostra e com o lençol abarrotado. Deu poucos passos, os que eram possíveis dentro da casa minúscula, e chegou à parede próxima à janela de madeira, onde ficava a gaiola do animal. Ele pegou a gaiola, deixou-a sobre a mesa de madeira gasta e olhou o canário nos olhos. O pássaro desviou o olhar quebranto e se virou de costas com as forças restantes que tinha. As penas opacas, úmidas e murchas, o olhar quase humano, caindo pelos lados num risco côncavo.

Foi quando o coração de tamanho acima do normal de Seu Rufino se partiu. Olhou para o nada, balançando a cabeça, com a expressão mais desolada da vida dele. Tentando esquecer aquilo por um minuto, virou-se para a janela e os leves raios de sol fizeram-no fechar os olhos . Encheu os pulmões. Justo ele, que normalmente não parava para respirar aquele ar das primeiras horas da manhã, porque gostava ainda mais da noite. Em sua memória fraca, aquela janela sempre fora a moldura de um quadro estrelado, o portal de um luar que enchia seu caderninho de versos baratos e a viola de um som estranhamente melodioso.

_ A culpa não é minha.

O canário manteve-se imóvel e voltou a chorar, dessa vez bem baixinho...

- Eu não acredito, meu amigo. Ela sempre dizia que ia e embora, mas como é que pode isso_

E seguiu, certo de que não estava louco, porque não falava sozinho, falava com o canário, seu fiel cúmplice nos tempos em que ela estava por ali.


_Ela tinha tinha tudo.(...) Era o meu amor mais grande.(..) Faltava um dinheirinho, às vezes faltava um feijão(....) Mas era tanto carinho... As músicas que eu fazia pra ela... Ela fez desfeita de tudo.(...)

Disse a última frase em escala descendente, indo o som morrer dentro de si, ficando quase inaudível.

O canarinho agora tremia. Seu Rufino viu que não tinha mais água nem comida na gaiola. Abriu a gaiola e pegou os pratinhos da água e da ração. O passarinho foi virando devagar, quase disfarçando, e com muito esforço. Virou um olho apertado para a gaiola entreaberta, deu pequenos passinhos à frente. Seu Rufino foi à cozinha, que era quase ali, na sala-quarto, espaço único onde ficava tudo na casa. Deixou a gaiola aberta. Aproveitou para fazer café com o mesmo pó com que tinha coado o café de ontem. Olhou uma garrafa de cachaça pelo meio. Virou-se no sentido contrário, num gesto brusco quase se benzendo. Abriu a despensa, que estava vazia. Lacrimejou mais uma vez quando ao fundo do forno viu um prato enrolado com um pano bordado a mão. Era o último bolo deixado por ela para ele.

Um barulho levíssimo como um pouco de areia ao vidro, fez seu Rufino prender a respiração e ficar atônito, trêmulo e com os olhos estatelados de medo de se mover. Engoliu a saliva grossa. Colocou o prato de bolo em cima da pia e virou-se tenso e suando.

Era mesmo isso.O canarinho estava agora ali, morto, ou agonizante, no chão de zinco.

Naquele dia, seu Rufino esperou o sol abaixar e na luz das cinco da tarde saiu com um paninho bordado à mão, embrulhando um volume pequeno e delicado, que ele carregava como a um filho recém-nascido. Alguns dizem que embora ocupasse as duas mãos no embrulho de pano, arrumou um jeito de levar a cachaça a tiracolo, num trapo amarrado como bolsa às costas. Pegou o rumo da ladeira, acompanhando o sol, que descia mais rápido do que subia, como é, aliás, a ordem natural das coisas. Nunca mais se soube de seu Rufino, de sua dor, de seus versos ou de sua viola, abandonada e exposta na janela, como que por vingança. E ninguém jamais falou de seu canário e do amor da sua vida, que não quis a vida que ele deu para ela.

Cachoeira, Só remanescente

Tudo tem gosto de infância perdida, tudo tem prazer de futuro vencido, tristeza de jovens desocupados nos sobrados em ruínas, eles sem perspectiva, dando pulos de cabeça da ponte. Toda religião é procissão de senhor morto, toda musica é reggae. Toda raiva é capoeira. E mesmo o samba é reggae. O candomblé reza trezena, o rio é quase só margens do paraguaçu remanescente.Tudo é amor proibido e jovens que dão cavalo de pau depois do passeio na estação. Pouco será poeta encantado. Um dia foram dois corpos carbonizados na Capapina. Tudo será amor bandido pelo homem que jamais sairá dali, e não tem charme por ter casa, mas por ter lindos cabelos encaracolados.

Volume 1001

Choro.É que escuto a música. Batidas fortes, de coração - o compasso da percussão. Memória minha evocada, completamente enebriada, de tantos, de açucarados e salgadísimos acordes. O meu choro, agora, não é pelo purismo ou pela sofisticação, visto que o que escuto é mestiça, eletrizante e dançante música brega. Dessas que falam de amores óbvios enquanto as mulheres, e os homens!, rebolam. Choro porque é com essa música, alguém dirá barulho, que a beleza vulgar, renegada, do povo feio explode emoção e calor por dentro do corpo que se contorce. Isso é dança, e é simplesmente vida. É a liberdade remanescente do espírito para o corpo pulsando como cura.

domingo, 9 de novembro de 2008

Sala de Espera

Em meio a todo pensamento, imersa, enredada, ela o viu entrar. Coisa ridícula essa de amor à primeira vista.
Pensamentos torpes aqueles, anti-pensamentos, quase obsessões, todos cheios de medo e incompletude. Quase que não a deixam vê-lo, quase que lhe convencem, em culpas e medos, de que ele não era para ela.
Um respiro, uma brecha, um vão no vento faz-lo inundá-la com olhar de beleza.
E estamos num consultório médico. O lugar mais safo do mundo para quem tem plano de saúde. Ele entra, camiseta simples, verde, calça, marrom, mochila com cara de nova e de uma alça só, transpassada pelo tórax enxuto. De um moreno claro, os olhos escuros, as sobrancelhas grossas, o olhar de quem reflete, mas nem tanto, de quem leva a vida meio a sério, meio na graça, de quem tem dois irmãos, de quem não tem muitos preconceitos e é muito educado. Poderia passar todo o tempo diante do charme daquele homem de 35 anos, talvez. Gostava de brincar de desvelar pessoas pela impressão do olhar. Poderia descobrir-lhe quase a vida inteira. E embora não visse muita lógica nisso, confiava insanamente nesse dom.
Estamos ainda no espaço de tempo em que ele abre a porta de vidro e se dirige à recepcionista. Mas isto não será muito longo, prometo. Ele caminha e caminha lento, belo, definidamente. Gentilezas, mesuras, informa-se sobre a consulta. Era uma consulta de revisão. Pega o documento e pergunta sorrindo, baixo, envergonhado se o doutor lhe pode dar um atestado.
A atendente sorri, simpática e maternal – o mundo deveria ser como os consultórios médicos, os conveniados a planos de saúde.
Ele olhou-a! Olhou-a! Que coisa fervilhante, coração que bate como se antes estivesse morto! Os dedos escorregam tanto, tanto que quase não conseguem cerrarem-se sobre a palma da mão, para que ela esconda as unhas malfeitas. Por que, meu Deus, eu nunca consigo deixar as unhas bonitas!Que incapacidade primária! Traço de falta vocacional para o ser mulher...

Ele - Você também vai para ele- pergunta- E fala o nome do médico.

Linda boca, deliciosos lábios, nem finos nem grossos. Com tanta simetria, haverá de ser libriano.

Ela - É porque estou aqui esperando outro médico. - Resposta de louca, parva, para não dizer ignorante. Ele olha para as mãos dela, ela encolhe dedos ainda mais, olha para o lado, amarra as pernas nos pés da cadeira, respira fundo para diminuir os tremores internos. Derruba cinco coisas ao mesmo tempo. Ele se aproxima para pegar , comovido.

Ela, que lê olhares, sente-se muito mal com o deboche bem intencionado da expressão dele.

Descargas elétricas sobre todos os nervos dela.

Ele - Você gosta de esperar por médicos
Ela - Não é por médicos.

Ele faz uma cara de interrogação, como quem adivinha, mas não confia em si próprio.

Ele – Semana passada te vi aqui mesmo. Que coincidência.
Ela – Eu sei. Foi sua primeira consulta com ele.

Ele – Você sempre ouve a conversa com a recepcionista_

Ela – Inevitável, neste silencio elegante. Gosto de consultórios médicos.. O trabalho, os amigos, a família. Todo mundo entende se você passa a manhã em um consultório. Venho todos os dias.

Ele – Todos os dias _

Ela – Todos os dias, desde a semana passada.

Ele_ E por que_

Ela - Queria te ver de novo.

quinta-feira, 6 de novembro de 2008

Inauguração do Tempo

A vida é uma trama de abandono. A cada dia, o deus tempo se vai um pouco mais, deixando-nos a sós, com a certeza de sua falta: a inconsciência.

Um sopro, um vento, o vazio, a angústia de existir , a de ter que desistir de existir, para sempre, sem sequer responder que sim, ou que não, porque não há pergunta. O tempo um dia vai parar, quando o mundo girar tão rápido, que não haverá mais tempo algum entre um giro e outro e não haverá mais tempo para dias e noites, ou para as quatro estações do ano, e haverá chegado o fim dos tempos, sem consciência alguma para presenciar. Ninguém para contar a história. Alguém precisa contar essa história antes.

Você quer verdade_ Imagine uma. Crie a mais perfeita ou a mais caótica das realidades e acredite, bem, profundamente, por alguns instantes, pelo menos. A ilusão nada mais é que a antecipação de um futuro em potencial, que ninguém jamais saberá se foi realizado.

E o tempo é a maior das ilusões, com todas essas coisinhas que ele mantém dentro de si: A vida. Infinito tempo. Sem tempo não há infinito, e sem infinito não há tempo. O grande deus, toda a imensidão de tudo, cruel e apaziguador.

Contarei a história mais verdadeira para a minha alma no último segundo, contarei as histórias das palavras que circundam sobre si em redundâncias e aliterações desordenadas, sem nada dizerem, afinal.

Isto que escrevo é sobre o tempo. Efêmero. E por incompetência de ver o mundo por outro meio que não o feminino, efêmera.

Tempo, meu amor e meu ódio, o deus da minha existência, que me abandona todo dia, cada vez mais, desde o princípio.

No tempo tudo caberá enquanto houver ilusão.

Aqui, caberá o pouco da angústia que conseguir espremer de mim.

quarta-feira, 5 de novembro de 2008

Teste

Dois, Quatro, Seis, Oito, oito, oito, testando....