domingo, 28 de março de 2010

A HORA DE CLARICE


Quando as pessoas morrem, têm caras de mortos nas fotografias. Os olhos cheios de além, a cor esvaída, a alma presa gritando, como levavam mais a sério os mais antigos. Hoje estou lendo uma fotobiografia. Fotos de família desde o século XIX, migrantes da Ucrânia para o Brasil. Aqueles traços angulosos e olhar monstruoso e sedutor. Quando eu lembro desse olhar dela, inconfundível, sinto um frio na alma, como se ela soubesse de mim, ou eu soubesse dela.

Eu tenho tanta saudade do mundo, que às vezes acho que estou morta. Essas fotos de todos os tempos, é como se as conhecesse, as tivesse vivido, e só não lembre em detalhes por não suportar. Como não suporto olhar o mar ou outra coisa linda e grande por mais de cinco segundos ininterruptos.

Olhando a citada biografia, eu vejo que mesmo quando a alma expressa o que se sente de forma carne viva e, ainda assim, bonita, mesmo assim, a vida são papéis e marcas das mais comuns, dessas que todos têm.

Cheguei do teatro. A peça falava de uma moça sem vida. Em casa, a autora estava estampada com a alma presa na fotografia. Não está mais aqui para saber de sua obra em bocas, corpos e olhos de gente que nem existia quando ela se foi. Assim como eu. Mas eu estava lá, e acho que ela sabia.

Sinto que tenho todos os tempos em mim. Passado, presente e futuro numa essência maluca que é só uma questão de tempo para ser tudo o que é. Sabia o que seria quando criança e sinto hoje exatamente o que era antes, gritando. E, mais, o mundo das fotografias preto e branco, das pinturas e esculturas antigas, até, é o meu mundo, e eu sempre soube que estaria aqui, e ele entrou em mim como poeira grudenta no dia em que o infinito suspendeu-se e ficou de pé para eu nascer. Era uma cidade-vale, histórica, quente e cheia de almas gritando nos sobrados. Foi respirando ali, que entendi que era daqui, desse todo, e aprendi a viver com um sobressalto e uma angústia nostálgica. Nostálgico, porque tudo sempre caminha para o fim. E só se é feliz quando se esquece.

Esqueço a morte, porque nunca conseguirei olhá-la, mas olho corajosa as fotografias mortas e páro. "Pensar é um ato. Sentir é um fato".

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